Thomas Fuller foi um Africano trazido para os EUA como escravo e que ficou conhecido por suas excepcionais habilidades aritméticas. Seu caso foi amplamente usado por abolicionistas a fim de argumentar que negros não eram mentalmente inferiores aos brancos. Por outro lado, psicólogos e psiquiatras defensores da inferioridade dos negros, refutaram tal argumentação e descreveram o caso como uma síndrome de Savant.
O pouco que se sabe da vida de Fuller, conforme sumarizado por Fauvel e Gerdes [1], vem de duas fontes:
Sabe-se que ele nasceu no oeste da África, em algum lugar na “Costa dos Escravos”, atualmente região entre Libéria e Benim:
“[Os habitantes da costa do Benim são] especialistas em manterem suas contas, que facilmente reconhecem como exatas, e são tão rápidos de cabeça quanto podemos fazer com caneta e tinta […]”
Negociante Jean Barbot (1655-1712)
“É surpreendente a facilidade que negociantes africanos fazem a troca de mercadorias europeias por escravos. […] todos os cálculos aritméticos são operações feitas de cabeça.”
Abolicionista Thomas Clarkson (1760-1846)
“uma rica tradição de contas de cabeça entre pessoas analfabetas [na Nigéria]”
Historiadores John Fauvel (1947-2001) e Paulus Gerdes (1952-2014)
Aos 14 anos foi sequestrado e enviado para a América, onde se tornaria propriedade legal de um casal de fazendeiros na Virgínia, EUA. Tendo em vista que o talento do jovem escravo poderia ser útil na prática, eventualmente passou a desempenhar outras atividades na fazenda além da plantação braçal. Exemplos:
Sendo que as respostas sempre eram imediatas e precisas, o que o tornou conhecido também como “Calculadora da Virgínia”.
A medida que sua fama crescia, diversas propostas muito atraentes foram oferecidas a seus proprietários. No entanto, assim como vários outros escravos da fazenda, Thomas Fuller nunca foi vendido e expressou gratidão por isso.
Aos 70 anos, uma dupla de comerciantes, ambos nativos da Pensilvânia, se interessou pelo caso e lançaram alguns problemas de aritmética pra Fuller resolver. Um desses problemas foi: “Quantos segundos um homem viveu com 70 anos, 17 dias e 12 horas de vida?”. Em pouco mais de um minuto veio a resposta: “2 210 500 800”. No entanto, um dos examinadores informou que a resposta estava incorreta e Fuller retrucou imediatamente: “Você esqueceu dos anos bissextos!”. Após essa correção, o examinador concordou com a resposta.
Apesar do desempenho impecável, Fuller informou que sua memória começara a falhar – já haviam vários sinais de fraqueza devido a idade. Daí, comentaram que foi uma pena ele não ter sido instruído no mesmo nível da sua genialidade, Fuller respondeu:
“Não, Mestre. É melhor que eu não tenha tido instrução, pois muitos que tiveram se tornaram grandes tolos.”
Thomas Fuller
Assim como seus proprietários, Fuller não havia sido alfabetizado e nem recebido instrução em aritmética.
Seu obituário em 1790 foi um tanto incomum pois “Negro Tom”, conforme estava escrito, nunca esteve próximo de Boston. Ele morreu a 800km dali, próximo da cidade de Alexandria, Virgínia, onde viveu toda sua vida adulta. Em seu epitáfio incluía, dentre outros, a seguinte elegia:
“Assim morreu o Negro Tom, este aritmético autodidata, este erudito sem instrução! […] Se suas oportunidades de desenvolvimento tivessem sido iguais às de milhares de seus colegas, nem a Royal Society de Londres, nem a Academia de Ciências de Paris, nem mesmo o próprio Newton, teriam tido vergonha de reconhecê-lo um Irmão na Ciência.”
Epitáfio de Thomas Fuller: Columbian Centinial, Dez 1790, Boston, Massachusetts
Obs: Note o caráter abolicionista da conclusão.
Só conhecemos Fuller, de fato, porque as pessoas queriam usá-lo como evidência na causa abolicionista. Pelo relato mais antigo de Fuller, devemos a Benjamin Rush (1746-1813). Rush era um homem de energia notável – médico, psiquiatra, professor de química, signatário da Declaração de Independência e trabalhador incessante de uma série de causas radicais – e era secretário da Sociedade da Pensilvânia para a Abolição da Escravidão quando chegou à Filadélfia a notícia das habilidades notáveis deste escravo que vivia na Virgínia.
Rush escreveu um relato da visita feita a Fuller por dois membros da sociedade, William Hartshorne e Samuel Coates, para enviar ao centro britânico do movimento. A razão para isso fica clara na carta de apresentação:
“A sociedade abolicionista em Londres, tendo solicitado à sociedade a abolição da escravatura na Filadélfia, para transmitir os relatos de melhoria mental, em qualquer um dos negros, que pudessem ser notados, a fim de melhor capacitá-los a contradizer aqueles que afirmam que as faculdades intelectuais dos negros não são capazes de aperfeiçoamento igual ao resto da humanidade, esses certificados foram enviados para Londres, com as últimas cartas da sociedade, além de outras até então enviadas.”
Benjamin Rush, 1789
Fuller foi, então, uma clara demonstração de que os negros não deveriam ser distinguidos dos outros por critérios intelectuais; nas circunstâncias do tráfico de escravos, ele foi uma das poucas demonstrações documentadas disso.
Por que essa demonstração foi necessária? Uma justificativa comum para a escravidão era que os negros eram intrinsecamente, naturalmente, inferiores aos brancos. Essa visão foi promovida nas obras de filósofos que influenciaram o pensamento da época.
As notícias de suas habilidades se espalharam rapidamente pela comunidade antiescravagista, e encontramos um relato mais curto de Rush em um folheto de Oxford, e seu relato mais longo reproduzido literalmente, no mesmo ano, nas intensas Letters on Slavery de William Dickson. A história já havia aparecido nas revistas mensais, na Universal Magazine em dezembro de 1788, e na Gentleman’s Magazine no mesmo mês.
Nesse período havia muito interesse francês também. J. P. Brissot de Warville (1754-1793), por exemplo, o político revolucionário francês que viajou pela América do Norte em 1788 como representante da Société des Amis des Noirs, observou:
“Tem sido geralmente pensado, e até mesmo escrito por alguns escritores notáveis, que os negros são inferiores aos brancos em capacidade mental. Essa opinião começa a desaparecer; os Estados do Norte fornecem exemplos em contrário. Citarei dois, que são notáveis: o primeiro [James Derham, um médico negro] prova que, por instrução, um negro pode se tornar capaz de qualquer uma das profissões: o segundo [Thomas Fuller], que a cabeça de um Negro pode ser organizada para os cálculos mais surpreendentes e, consequentemente, para todas as ciências.
[…] Esses casos provam, sem dúvida, que a capacidade dos negros pode ser estendida a qualquer coisa; que eles só precisam de instrução e liberdade.”Jacques Pierre Brissot, 1794
Outro revolucionário francês que citou Fuller nesse contexto, em seus esforços para garantir direitos iguais para negros e brancos nas colônias francesas, foi o abade Henri Gregoire (1750-1831). E a localização mais eloquente de Fuller dentro desse argumento veio mais tarde no século 19, quando o primeiro membro negro do Legislativo de Ohio escreveu sua History of the Negro Race in America:
“Um dos argumentos permanentes contra o negro era que ele não tinha a faculdade de resolver problemas matemáticos. Essa acusação foi feita sem a disposição de permitir-lhe a oportunidade de se submeter a um teste adequado. Era equivalente a arrancar os olhos de um homem e depois afirmar com ousadia que ele não pode ver; de algemar seus tornozelos e acusá-lo de incapacidade de correr. Mas, apesar de todas as proibições contra instruir o negro, e sua distância dos estimulantes intelectuais, o assunto para o qual a atenção agora é chamada [Thomas Fuller] tinha dentro de seu próprio intelecto inexperiente os elementos de um grande matemático.
[…] Que ele era um prodígio, ninguém questionará. Ele era a maravilha da época.”Williams, 1883
[ 1 ] “African Slave and Calculating Prodigy: Bicentenary of the Death of Thomas Fuller”, John Fauvel e Paulus Gerde, 1990 | PDF
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